NOTA: 4,0 / 5,0
Um deleite visual. Assim pode ser resumida a nova série da Netflix, O Cristal Encantado: A Era da Resistência, prelúdio do clássico filme de 1982, criado originalmente por Jim Henson. Misturando marionetes com animação, um elenco estelar, e trazendo uma história de fantasia digna de comparação com O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia e Game of Thrones — que ainda serve como uma bela e sombria analogia à sociedade capitalista atual.
O primeiro contato com a produção já demonstra o capricho exaltado com o ambicioso projeto, seja na criação da mágica terra de Thra, na trilha sonora, no suntuoso trabalho feito com as marionetes da The Jim Henson Company, ou nas vozes dos dubladores. Tanto para quem conhece a história original de O Cristal Encantado (que vai reconhecer vários personagens do clássico dos anos 80), quanto para quem tem contato com a mitologia pela primeira vez, não dá para negar que a série é um prato cheio para os fãs de fantasia.
Se você se impressiona com a arte de marionetes, certamente ficará de queixo caído com a qualidade da série; se você é daqueles que sente estranhamento com a técnica, eventualmente será tão envolvido na narrativa que deixará de lado essa aversão. Enquanto, por um lado, existem cenas sutis que estão lá simplesmente para mostrar o que é possível fazer com marionetes e efeitos visuais, por outro há um detalhamento e um cuidado nas expressões dos personagens, além de emoção até mesmo em cenas de ação muito bem construídas.
Mas do que se trata O Cristal Encantado: A Era da Resistência? A trama acompanha as criaturas de Thra, uma terra que deveria estar em equilíbrio graças ao cristal encantado, não fosse pelos cruéis Skeksis que exploram o item mágico para garantir vida eterna e acabam gerando a Escuridão, que está corrompendo plantas e animais. Governantes dos demais habitantes do local, eles cobram excessivas taxas tributárias e exploram seus súditos com o pretexto de serem benevolentes. Nesse sentido, o seriado segue a história de três seres da espécie Gelfling, que percebem, individualmente, que há algo errado com o planeta e que os Skeksis são mal-intencionados — drenando sem piedade a vida daqueles que os servem. “Escravos que não sabem que são escravos. Eles dançam, bebem e se divertem”, diz uma memorável frase de um dos Skeksis sobre os Gelflings.
Assim, somos apresentados aos personagens “escolhidos”, que darão início à chama da rebelião antecipada no título: o corajoso Rian (voz de Taron Egerton); a adorável e ingênua Deet (Nathalie Emmanuel), e a estudiosa e questionadora Brea (Anya Taylor-Joy). Bem diferentes entre si — fato que fica mais claro ao longo dos episódios — eles acabam se encontrando ao longo da temporada e unindo forças para desafiar as leis e “ordem natural” da sociedade que os cerca. Os Gelflings são divididos em sete clãs, diferenciados por suas vestimentas, expressões, pinturas faciais, cores de cabelos e penteados. Eles funcionam como castas sob a proteção da líder suprema Gran-Maudra (voz de Helena Bonham Carter), que faz concessões aos Skeksis para cuidar de seu povo e não sofrer a ira dos vilões.
Por vezes, os Gelflings são muito expressivos, por outras, falta um pouco de sentimento. O personagem de Egerton (tanto na voz quanto na expressão da marionete), por exemplo, peca um pouco em apresentar o sentimento que Emmanuel e Taylor-Joy conseguem agregar às protagonistas. Ainda assim, o trabalho dos marionetistas é excelente, e A Era da Resistência ainda apresenta emocionantes cenas musicais. Então, sim, não só Taron (conhecido por seu trabalho em Rocketman) mas também Nathalie e Anya soltam a voz em cena.
No entanto, não se deixe enganar pela beleza estonteante e fofa da produção. A série é sombria, com personagens cruéis, traiçoeiros e, bem, assassinos. Mas não tema: não chega a ser o banho de sangue (e nudez) de Game of Thrones, então tudo bem reunir a família para assistir. Do lado dos assustadores Skeksis, criaturas nojentas (até demais, com desnecessárias cenas de piada com arroto e catarro) e sem pudor, passam por uma importante mudança ao longo da temporada. Afinal, até onde eles irão para conseguir o que querem, continuando enganando seus súditos ou escancarando a verdade para todos?
Um dos pontos altos de O Cristal Encantado: A Era da Resistência é o empoderamento feminino, colocando fortes personagens femininas em destaque (para o bem e para o mal). Além do fato de que todas as líderes dos clãs Gelflings são fêmeas e de que a misteriosa Aughra (voz de Donna Kimball) seja apresentada como uma espécie de poderosa “mãe natureza”, a produção ainda destaca a importância da sororidade e da irmandade feminina — um exemplo é que, apesar das diferenças e acontecimentos, laços entre irmãs dificilmente são quebrados.
Como toda trama de fantasia, Dark Crystal: Age of Resistance (no original) insere em sua trama a célebre moral da história — geralmente presente na figura de Aughra. Através das frases de efeito dela e das atitudes dos Skeksis, é possível notar uma forte crítica social. Difícil não pensar (e se entristecer) com o fato de que o equilíbrio da terra de Thra está sendo ameaçado por cruéis governantes que só pensam em seus interesses, e negam veemente que a “escuridão não existe” e vociferam que notícias falsas estão sendo propagadas pelos revolucionários descontentes. É inevitável uma associação com a sociedade capitalista atual na qual os empresários e governantes pensam no dinheiro antes do meio ambiente. No entanto, a série vai além e faz uma concessão frente às oposições e mostra que não devemos tratá-las como inimigos: nem todos que fazem o mal querem isso, às vezes estão simplesmente cegos aos fatos, e não conseguem olhar além da sua própria raiva. Mais do que um questionamento do nosso modo de vida, a produção serve como uma esperança necessária no momento atual, de reconciliação com o outro, e de que a verdade vai aparecer em algum momento.
Com um forte gancho para uma próxima temporada, O Cristal Encantado: A Era da Resistência começa meio arrastada, mas usa seu tempo necessário para apresentar a trama, os personagens e as reviravoltas sobre a mitologia das criaturas de Thra em seus dez episódios. Não só na técnica mas no roteiro, a palavra da vez é surpreendente.
Via Adoro Cinema