Quanto vale o homem?
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?
Vale menos, morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem
é medida de homem?
(Carlos Drummond de Andrade)
O filósofo Immanuel Kant ensinava que dignidade não tem preço. Tem valor, o que é bem diferente. Dizia o mestre da filosofia moral que “no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando algo está acima de todo preço e, portanto, não permite equivalente, então ele tem dignidade.”2 Ser humano não é “coisa” e, portanto, não pode ter preço. É sujeito dotado de dignidade. Logo, sua moral não pode ser tabelada como se mercadoria fosse, sob pena de negarmos sua própria existência.
Essa perspectiva ontológica serve de premissa moral para o raciocínio jurídico que desenvolveremos a seguir, pois, tal como nos versos do poeta de Itabira, para o direito, restará, sempre, uma pergunta sem resposta: “quanto vale um homem”?
Certamente, muito mais do que considerou o legislador brasileiro ao estipular quantias insignificantes para a reparação do dano moral (agora chamado de “extra-patrimonial”) na chamada “reforma trabalhista”. De qualquer modo, independentemente dos valores fixados por nossos parlamentares, a tarifação prevista no art.223-G, §1º, da CLT não é compatível com os princípios constitucionais estruturantes nem se sustenta diante da interpretação sistemática do ordenamento jurídico-normativo.
Primeiro, porque afronta a garantia de “reparação integral” do dano causado ao ofendido. Tanto é assim que o STF já decidiu pela incompatibilidade da tarifação da indenização por dano moral prevista na lei de imprensa (lei 5.250/67), diante da tutela ampla garantida pela Constituição Federal de 1988, conforme se infere do precedente firmado no RE 396.386/SP, de 29/6/4, em que foi relator o ministro Carlos Velloso. O acórdão trata do fenômeno da não recepção do art.52 da lei 5.250/67, mas seus fundamentos também caem como uma luva na exegese do art.223-G, §1º, CLT, embora, aqui, o caso seja de inconstitucionalidade, uma vez que a norma é posterior à Carta Magna de 19883.
Na mesma linha converge a súmula 281 do STJ:
“A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na lei de imprensa.”
Raciocínio semelhante, “a fortiori“, deve ser aplicado à tarifação do dano extra-patrimonial, prevista no art.223-G, §1º, da CLT, tendo em vista a flagrante violação à reparação integral determinada no art. 5º, inciso V, da CF: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” – destaquei.
Segundo, porque o art.223-G da CLT também viola a garantia individual indeclinável, contida no art.5º, inciso X, da Carta Magna: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Terceiro, o novo preceito consolidado viola o princípio da isonomia (art.5º, “caput”, CF),na medida em que cria infinitas possibilidades de atribuição de resultados extremamente distintos, a pessoas em situações semelhantes. Por exemplo, pensemos na hipótese de um empregador vir a ofender toda uma turma de trabalhadores com um único palavrão ou com uma mesma conduta. Ou, então, de um acidente de trabalho que atinge, com idêntica gravidade, diversos empregados de uma mesma empresa, como, por exemplo, o vazamento de amônia em um frigorífico. Nesses casos, o dano e a ofensa serão os mesmos, porém, o valor da reparação seria proporcional ao salário que cada um dos ofendidos recebe, evidenciando um tratamento nitidamente discriminatório.
Quarto, a inovação trazida pela reforma trabalhista traz uma incompatibilidade sistêmica com o art.944 do CC e com o art.100 do Código de Defesa do Consumidor, na medida em, ao violar o princípio da reparação integral, impede que o ofendido, na seara trabalhista, tenha o mesmo tratamento dispensado àquele que busca a reparação pelo dano moral em uma ação cível, desconsiderando, ainda, que o valor da indenização não se limita à “reparação” do mal causado, mas também tem um caráter pedagógico e preventivo que vai além da função punitiva.
Quinto, porque o art. 223-G, §1º, da CLT está em rota de colisão com o art.11 da convenção americana sobre direitos humanos(pacto de San José da Costa Risca), que garante a proteção integral dos direitos humanos à honra e à intimidade. No julgamento da súmula vinculante no 25/STF, ficou assentado que as normas internacionais que tratam sobre direitos humanos detêm caráter SUPRALEGAL, estando, portanto, acima da lei ordinária.
Extrai-se daí que o art. 11 da convenção americana sobre direitos humanos, ao prever a proteção adequada aos direitos à honra e à intimidade, constitui uma norma hierarquicamente superior ao art.223-G/CLT, lembrando que, por sinal, a súmula vinculante 25/STF, ao proibir a prisão do depositário infiel, invocou, exatamente, o mesmo pacto de San José da Costa Rica.
Sexto, a adoção de um critério quantitativo para mensurar a dignidade do ofendido a partir de sua remuneração viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF).
O legislador infraconstitucional, ao vincular o teto da indenização à última remuneração percebida pelo trabalhador, estabeleceu um parâmetro monetário para dimensionar a reparação, ou seja, quanto maior o salário recebido, mais valor tem a dignidade do obreiro. Em outras palavras, foi colocado “preço” na honra daquele que foi ofendido. Portanto, a tarifação do dano extrapatrimonial viola o princípio da dignidade da pessoa humana.
Sétimo, o critério fixado pelo legislador cria um obstáculo para o magistrado na entrega de uma prestação jurisdicional justa e pacificadora, inclusive, cerceando a fundamentação de uma dosimetria adequada para fixar a reparação cabível no caso concreto. Daí se afirmar que o art.223-G, §1º, da CLT também viola o direito ao processo justo (art.5º, LIV, CF) e a garantia de “livre convencimento motivado do juiz” (art.93, IX, CF).
Oitavo, porque, se prevalecer a limitação prevista na nova CLT, teremos uma contradição insuperável em nosso sistema jurídico, haja vista que fatos semelhantes poderão gerar indenizações em valores muito diferentes, dependendo do órgão julgador. Tomemos, como exemplo, a MORTE provocada por um acidente. Nesta Justiça especializada, os dependentes de um empregado que ganhava salário mínimo e foi vitimado em acidente de trabalho receberão, de acordo com a nova regra, indenização por dano moral no valor máximo de R$ 49.900,00 – considerando o salário mínimo nacionalmente unificado (R$ 998,00 x 50). Trata-se de valor bastante aquém do que vem arbitrando a jurisprudência do STJ. Vejamos:
1.000 (um mil) salários mínimos: RESPONSABILIDADE CIVIL. ESTUPRO E ASSASSINATO DE ESTAGIÁRIA NO INTERIOR DE FÁBRICA. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. RAZOABILIDADE. Dadas as particularidades da espécie, em que a autora da ação indenizatória teve sua filha estuprada e assassinada, impõe-se a manutenção do quantum indenizatório no patamar em que fixado pelo Tribunal a quo. Não justificada, portanto, a excepcional intervenção desta Corte para rever a verba indenizatória. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp: 737918 RJ 2005/0051300-4, relator: ministro CESAR ASFOR ROCHA, data de julgamento: 12/06/07, T4 – QUARTA TURMA, data de publicação: DJ 13.8.7 p. 374 RT vol. 866 p. 152)
1.000 (um mil) salários mínimos: RECURSO ESPECIAL – RESPONSABILIDADE CIVIL – ACIDENTE EM PLATAFORMA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO – MORTE DE FILHO – DANOS MORAIS – QUANTUM INDENIZATÓRIO – NÚMERO DE LESADOS – RAZOABILIDADE – RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. Aos parâmetros usualmente considerados à aferição do excesso ou irrisão no arbitramento do quantum indenizatório de danos morais – gravidade e repercussão da lesão, grau de culpa do ofensor, nível socioeconômico das partes -, perfaz-se imprescindível somar a quantidade de integrantes do pólo proponente da lide. A observância da eqüidade, das regras de experiência e bom senso, e dos princípios da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade quando da fixação da reparação de danos morais não se coaduna com o desprezo do número de lesados pela morte de parente. 2. Ante as peculiaridades da espécie, a manutenção do quantum indenizatório arbitrado pelo Tribunal a quo, em valor equivalente a 500 salários mínimos para cada um dos autores, pais da vítima do acidente laboral, denota eqüidade e moderação, não implicando em enriquecimento sem causa. 3. Recurso Especial não conhecido. (STJ – REsp: 745710 RJ 2005/0068106-6, relator: ministro CESAR ASFOR ROCHA, data de julgamento: 5/12/6, T4 – QUARTA TURMA, data de publicação: DJ 09/04/07 p. 254LEXSTJ vol. 213 p. 128RT vol. 862 p. 116/59 – sublinhei.
500 (quinhentos) salários mínimos: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. MORTE DE FILHO.ACIDENTE DE TRABALHO. DANO MORAL. PENSÃO. PARCIAL PROVIMENTO. 1. A indenização por dano moral decorrente de morte aos familiares da vítima é admitida por esta Corte, geralmente, até o montante equivalente a 500 (quinhentos) salários mínimos. Precedentes. 2. A pensão devida à genitora, economicamente dependente do filho falecido em acidente de trabalho, é de 2/3 (dois terços) dos ganhos da vítima fatal até a data em que completaria 25 (vinte e cinco) anos de idade, passando a 1/3 (um terço) a partir de então, quando se presume que o falecido 60 constituiria família e reduziria o auxílio dado aos seus dependentes. 3. Agravo regimental a que se dá parcial provimento. (AgRg no REsp 976.872/PE, rel. ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 14/2/12, DJe 28/2/12)
Como se vê, a jurisprudência do STJ estabeleceu indenizações por dano moral decorrente de morte na média de 500 (quinhentos) salários mínimos, um patamar 10 (dez) vezes superior ao teto indenizatório estabelecido pela nova regra do art. 223-G (§ 1º, IV), sendo que algumas decisões estabeleceram o valor de até 1.000 (mil) salários mínimos, ou seja, 20 (vinte) vezes o valor máximo previsto, atualmente, na CLT, o que se revela manifestamente discriminatório e incongruente4.
Por fim, evoco as sábias palavras do ministro EROS GRAU ao dizer que “a dignidade da pessoa humana não tem preço”:
“STF – A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NÃO TEM PREÇO ‘(…) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não poderia ter sido contrariada, em seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência. (…) Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Assim, o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém, de quem o proclame, conforme o seu critério particular. Estaremos, então, em perigo, submissos à tirania dos valores. (ADPF 153, voto do rel. min. Eros Grau, julgamento em 29-4-10, Plenário, DJE de 6-8-10.)”
Por tudo quanto exposto, concluo ser incabível a tarifação do dano extrapatrimonial prevista no art. 223-G, §1º, da CLT.
Em controle de constitucionalidade, o art.223-G,§1º, da CLT viola os artigos . 1º, inciso IV, 5º, incisos I, V e X e 93, inciso IX, todos da Carta Magna, à semelhança do art.52 da lei 5.250/67.
Em controle de convencionalidade, o art.223-G da CLT viola o art.11 do pacto de San José, lembrando que essa norma tem caráter supralegal, conforme súmula vinculante 25/STF.
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1 Andrade, Carlos Drummond. Trecho de “Especulações em Torno da Palavra Homem” – em “A Vida passada a limpo”, Editora Record, 2002 – 28.
2 Kant, Immanuel , Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 60
3 “CONSTITUCIONAL. CIVIL. DANO MORAL: OFENSA PRATICADA PELA IMPRENSA. INDENIZAÇÃO: TARIFAÇÃO. Lei 5.250/67 – lei de imprensa, art. 52: NÃO-RECEPÇÃO PELA CF/88, artigo 5º, incisos V e X. RE INTERPOSTO COM FUNDAMENTO NAS ALÍNEAS a e b. I. – O acórdão recorrido decidiu que o art. 52 da lei 5.250, de 1967 – lei de imprensa – não foi recebido pela CF/88. RE interposto com base nas alíneas a e b (CF, art. 102, III, a e b). Não-conhecimento do RE com base na alínea b, por isso que o acórdão não declarou a inconstitucionalidade do art. 52 da lei 5.250/67. É que não há falar em inconstitucionalidade superveniente. Tem-se, em tal caso, a aplicação da conhecida doutrina de Kelsen: as normas infraconstitucionais anteriores à Constituição, com esta incompatíveis, não são por ela recebidas. Noutras palavras, ocorre derrogação, pela Constituição nova, de normas infraconstitucionais com esta incompatíveis. II. – A Constituição de 1988 emprestou à reparação decorrente do dano moral tratamento especial – C.F., art. 5º, V e X – desejando que a indenização decorrente desse dano fosse a mais ampla. Posta a questão nesses termos, não seria possível sujeitá-la aos limites estreitos da lei de imprensa. Se o fizéssemos, estaríamos interpretando a Constituição no rumo da lei ordinária, quando é de sabença comum que as leis devem ser interpretadas no rumo da Constituição. III. – Não-recepção, pela CF/88, do art. 52 da lei 5.250/67 – lei de imprensa. IV. – precedentes do STF relativamente ao art. 56 da lei 5.250/67: RE 348.827/RJ e 420.784/SP, Velloso, 2ª Turma, 1º 6.2004. V. – RE conhecido – alínea a -, mas improvido. RE – alínea b – não conhecido. (RE 396386/SP- SÃO PAULO relator: min. CARLOS VELLOSO, órgão julgador: 2ª turma, DJ 13-08-2004).
4 Hermenêutica infraconstitucional da lei 13.467/17- reforma trabalhista / Carlos Eduardo de Azevedo Lima … [et al.]. — Brasília: MPT Gráfica Movimento, 2018. 92 p.; 23 cm, pág.58/59.
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*Renato da Fonseca Janon é juiz titular da 1ª VT de Lençóis Paulista.