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Comida de verdade, sem veneno e para todos? É da sua conta sim – O fim do CONSEA

Toda gestante e mulher que amamenta é praticamente bombardeada de informações sobre que tipo de alimento comer, qual não comer, se está comendo de mais ou de menos. Um controle quase absoluto de todos os lados: família, equipe de saúde, amigos, mídia. Aí a criança nasce e começa a busca por conseguir amamentar – contra uma enxurrada de desinformação, pitacos, conselhos, orientações de desmame. A criança cresce um pouquinho e começam as opiniões não solicitadas sobre a introdução alimentar. Quem consegue se dedicar à busca de informação, questão já bastante problemática, posto que no Brasil acesso à informação é privilégio, faz escolhas, seleciona e, via de regra, busca aquilo que é possível para si e que cabe em sua vida, em seu bolso, em sua rotina.

O que encontramos sempre é o grande incentivo multilateral pela boa alimentação para a criança”, depois de toda a pressão pela boa alimentação da mãe grávida”. E uma das principais preocupações tem sido a quantidade de veneno em forma de agrotóxicos a que nós todos somos diariamente expostos. Especialmente as crianças. Não sabemos, com precisão, a origem de toda a epidemia de alergias, dermatites, problemas alimentares, rejeições, intolerâncias e malformações. E a exposição precoce, contínua e intensa a venenos agrotóxicos pode, sim, ser uma das causas. O fato de não termos evidências científicas contundentes que nos levem a conclusões mais assertivas não diz muito, afinal de contas os conglomerados que pagam pelo direito de envenenar os alimentos para aumentar a produtividade são os mesmos que controlam, em maior ou menor grau, os pareceres de artigos em muitas revistas científicas. Quem ignora esse fato e insiste em dizer que não há evidência científica suficiente que embase conclusões assim está sendo, no mínimo, desonesto e leviano.

E segue nossa busca pela melhor alimentação para as crianças. Evitamos o açúcar na primeira infância, evitamos as gorduras hidrogenadas, evitamos comidas de pacote, com corantes, conservantes, excesso de sódio. Suamos o salário de todo mês para conseguir comprar comidas mais saudáveis, com menos nomes incompreensíveis nos rótulos. Damos preferência às verduras. Ralamos todos os dias para fazer os pequenos e as pequenas comerem mais verduras, mais legumes, mais frutas. Picamos, processamos, cortamos. E batemos no peito quando conseguimos incentivá-los de maneira eficiente a comer o que chamamos de comida de verdade”.

Será mesmo? De verdade? Bem, se sim, essa época pode ter chegado ao fim. Pode ser que, a partir de agora, a maçã vermelhinha, o mamão amarelinho, o brócolis verdinho não sejam mais tão recomendáveis. Você pode estar pensando que já não eram. Concordo. Mas o que já era ruim poderá ficar bem pior. Pra mim, pra você, pra mulher que gesta um bebê, para o bebê em introdução alimentar, para a criança tão suscetível a substâncias tóxicas, para todos nós.

Em 1993, quando ainda tínhamos Itamar Franco como presidente, foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA. O objetivo principal do CONSEA era defender e promover o direito humano básico ao alimento e à alimentação”. Concorda comigo que ter um alimento é um dos principais direitos das pessoas? Se você, por acaso, acha que isso é um exagero, certamente nunca te faltou comida. Mas experimente conversar com seus pais, ou tios, ou avós, ou bisavós. Certamente alguém em nossa linha antecessora não teve um alimento quando teve fome e precisou dormir com a barriga roncando… Lembro do meu pai dizendo isso, da minha avó dizendo isso. Não ter alimento faz parte dos átomos que nos compõem, nossa matéria é inevitavelmente derivada de pessoas que passaram fome um dia.

O CONSEA servia pra assessorar o Presidente da República nas questões relativas à segurança alimentar do povo. Um Presidente não tem condição de saber de absolutamente tudo, certo? Certo. Por isso existem conselhos como o CONSEA, para que pessoas que entendem mais possam fazer análises e proposições que o Presidente pode avaliar. Dois terços das pessoas que compunham o CONSEA eram membros da sociedade civil e um terço, representantes do governo. Ou seja: a sociedade participava diretamente, apontando necessidades e atuando como consultora. As propostas eram debatidas previamente e apresentadas em plenário pelos membros, visando propor soluções para problemas relacionados à alimentação do povo, e votadas. Depois de aprovadas, seguiam como recomendações à Presidência da República. Tudo de maneira organizada e de acordo com um regimento interno. Se, em nossa Constituição Federal, temos o direito à alimentação mencionado, se temos políticas sobre segurança alimentar e nutricional (Política e Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), se temos uma política que incentiva a agricultura familiar (Plano Safra da Agricultura Familiar), se temos a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Política Nacional de Alimentação Escolar e outras políticas que afetam instituições públicas e privadas, famílias, todas as pessoas, é porque temos o CONSEA.

Tínhamos.

Nesta quarta-feira, 02/01/2019, foi com grande pesar que todos recebemos a notícia da extinção do CONSEA. Um órgão consultor, assessor, onde a sociedade civil participava, que ajudava a melhorar a alimentação de todas e todos nós, foi extinto pelo novo governo de Jair Bolsonaro. Não apenas os membros do CONSEA foram pegos de surpresa e estão chocados, como todas e todos nós que valorizamos o direito de comermos boas coisas e oferecermos boa comida aos nossos filhos. Um conselho que servia de modelo para inúmeros países! Que vinha ajudando em avanços importantes. Extinto…

De acordo com a mudança que levou à extinção do CONSEA, agora as políticas de segurança alimentar não serão mais prioridade e estarão sob responsabilidade do Ministério da Cidadania – e sem a participação da sociedade civil. Gente que entende do assunto não poderá mais fazer proposições que visam melhorar a alimentação do nosso povo.

As principais entidades nacionais que cuidam de questões alimentares e nutricionais vieram a público manifestar seu pesar. Não há justificativa plausível para isso, uma vez que os benefícios do CONSEA eram vistos diariamente na sociedade brasileira em inúmeros níveis, do macro ao micro. A ASBRAN (Associação Brasileira de Nutrição) repudiou o fim do CONSEA. De acordo com ela:

O fim do CONSEA representa o fim do grande debate que o Brasil vem fazendo sobre a fome, com ações de enfrentamento que se tornaram referência no mundo (…). É um retrocesso incomparável nas políticas de segurança alimentar e nutricional, justamente em um momento em que o país precisa aprofundá-las”.

Nós que somos mães, que cuidamos da alimentação diária das nossas crianças, sabemos como é importante não oferecer a elas alimentos cheios de venenos, banhados em agrotóxicos. Também por isso, nós somos contra a PL do Veneno, um projeto de lei de 2002 que atualizaria a legislação que temos sobre agrotóxicos, visando relaxar os rigores com relação à quantidade de agrotóxicos a que somos expostos (ou seja, aumentar o uso de agrotóxicos). Adivinha? A postura contrária à PL do Veneno e o alerta sobre como esse PL pode desencadear efeitos graves, surgiu também de debates dentro do CONSEA.

Resta a nós, mulheres mães, cuidadoras, que alimentamos nossos filhos todos os dias, muitas vezes por dia, nos resignarmos em oferecer aos nossos bebês e crianças frutas e legumes embebidos de agrotóxicos? Vê-los se alimentando de veneno nas escolas? Resta a nós, que tanto nos esforçamos em oferecer às crianças o melhor que pudermos, fecharmos os nossos olhos para o envenenamento lento e gradual dessa geração? Fecharmos os olhos para a mazela da fome de tantas crianças, de tantos bebês, de tantas outras mães, de tanta gente?

Não.

Resta a nós lutarmos para que COMIDA DE VERDADE E SEM VENENO seja uma realidade concreta da vida de todas e todos. Não sermos envenenadas, não termos o leite que sai de nossos peitos envenenado, não oferecer comida envenenada, ter comida para todos (crianças e adultos), regulamentar a qualidade da alimentação que nossas crianças recebem nas escolas, não ter gente do nosso próprio chão passando fome é mais que recomendável. É nosso direito como seres humanos.

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